Introdução
Em março deste ano escrevi um artigo, publicado aqui no Velho General (Da Red Sox a Nuland: 78 anos do Plano Ucrânia), no qual eu concluía ser a demissão de Victoria Nuland o evento político mais importante do conflito ucraniano, desde o golpe que derrubou o presidente Viktor Yanukovich em 2014.
No citado artigo, elaborei um resumo do “Projeto Ucrânia”, assim denominado pelo governo americano, desde suas origens na década de 1950, quando a Central Intelligence Agency (CIA), começou a patrocinar as ações de Borislav Holtsman, cidadão ucraniano, que acabou por dar origem a diversos movimentos de resistência contra a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), tais como o Movimento Nacionalista Ucraniano, o Conselho Supremo de Libertação da Ucrânia e, principalmente, o Exército Insurgente Ucraniano (ou UPA: Ukrainska Povstanska Armiia). Como vimos, dentre os quadros recrutados estavam Ivan Hrynokh, Yuriy lopatinskyy, Mykola Lebed, Myron Matvienko e, principalmente, Stepan Bandera, comandante do Exército Nacional Ucraniano durante o período de dominação nazista.
Com o fim da URSS, o Projeto Ucrânia inicialmente havia sido engavetado, até que no final da década de 1980, o principal conselheiro da Casa Branca sobre questões relativas à Europa Central e Oriental, Zbigniew Brzezinski, elaborou a chamada “Geoestratégia para a Eurásia”, que previa que o vácuo deixado pela URSS deveria ser preenchido rapidamente pelo poder norte-americano. Isso passava pela expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para o leste europeu e para a Ásia central. E essa se tornou uma das bases da política externa dos EUA para a região, sendo progressivamente executada pelos governos norte-americanos, tanto democratas, quanto republicanos.
A questão da Ucrânia era de vital importância para essa expansão, pois sua adesão à OTAN significaria que a aliança dominaria a região do Mar Negro e da Crimeia. Portanto, o ressurgimento do Projeto Ucrânia, sob uma nova roupagem, se mostrava essencial. E nesta nova fase, o projeto passou a ter uma ativa liderança: Victoria Nuland.
Não vou entrar em detalhes sobre a atuação dela à frente do Projeto Ucrânia, e quem desejar se aprofundar no tema, basta ler meu artigo já referenciado. O objetivo deste novo artigo é verificar qual é a situação atual do Projeto Ucrânia sem sua gerente e principal mentora, demitida no início deste ano, e quais são as perspectivas futuras da ação dos EUA no país, e para toda a Europa Central.
Da demissão de Nuland ao cancelamento da Reunião de Ramstein
Demissão de Victoria Nuland
A demissão de Victoria Nuland em março de 2024 foi um evento significativo na política externa dos EUA. Nuland, que ocupava o cargo de subsecretária de Estado para Assuntos Políticos, teve um papel crucial na resposta dos Estados Unidos à invasão russa da Ucrânia. Sua saída foi vista como um reflexo das tensões internas dentro do governo e das dificuldades em manter uma estratégia coesa para a região.
Nuland era conhecida por suas opiniões firmes sobre a Rússia e por seu papel ativo durante a Revolução de Maidan em 2014, onde sua famosa declaração “Fuck Europe!” destacou sua frustração com a hesitação europeia em apoiar os protestos pró-democracia na Ucrânia. Durante sua carreira, ela também trabalhou na embaixada dos EUA em Moscou nos anos 1990 e serviu como embaixadora dos EUA na OTAN, além de ter sido porta-voz do Departamento de Estado sob Hillary Clinton.
Após sua demissão, Julianne Smith, então embaixadora dos Estados Unidos na OTAN, foi indicada para substituí-la. A saída de Nuland deixou um vazio significativo na liderança da política dos EUA para a Ucrânia, especialmente em um momento crítico de impasse no Congresso sobre a ajuda financeira ao país. Antony Blinken, Secretário de Estado, elogiou Nuland como uma líder excepcional cuja contribuição será estudada por diplomatas e estudantes de política externa nos próximos anos.
A saída de Nuland marcou um ponto de inflexão para a “Geoestratégia para a Eurásia”. E o Projeto Ucrânia começava a perder rumo.
Impasse no Congresso
Nos meses seguintes à demissão de Nuland os problemas começaram a emergir na política dos Estados Unidos. E o principal deles foi o início de um impasse significativo no Congresso americano sobre a concessão de ajuda financeira adicional à Ucrânia.
Este impasse foi causado por preocupações sobre os estoques de armas do Pentágono e a prontidão militar dos EUA, além de debates sobre a eficácia e o custo do apoio contínuo à Ucrânia.
O impasse sobre a aprovação de ajuda financeira para a Ucrânia revelou um desafio significativo, e inédito, para a tradicional postura bipartidária do Congresso dos Estados Unidos frente aos temas da Estratégia de Segurança Nacional. O desentendimento entre democratas e republicanos sobre esse tema revelou, sem a menor dúvida, que a Ucrânia e a expansão da OTAN para o leste deixavam de ser uma unanimidade na liderança política dos EUA.
E desde o início de 2024, legisladores democratas e republicanos têm debatido intensamente sobre a concessão de um pacote de ajuda de aproximadamente 60 bilhões de dólares. As divergências centram-se principalmente nas preocupações dos republicanos de linha dura, que questionam o custo e a eficácia do apoio contínuo à Ucrânia, além de quererem incluir verbas para o controle de fronteiras e gestão da migração nos EUA.
Esse impasse já teve consequências no campo de batalha na Ucrânia. A falta de aprovação do pacote de ajuda afetou o fluxo de apoio militar, forçando a Ucrânia a depender mais dos aliados europeus e do Canadá para suprir suas necessidades imediatas. Jens Stoltenberg, então secretário-geral da OTAN, destacou que a continuidade do apoio dos EUA é vital para impedir a vitória russa e enviar uma mensagem clara contra o uso da força militar por regimes autoritários.
Apesar das dificuldades, houve alguns avanços. Em abril de 2024, a Câmara finalmente aprovou o pacote de ajuda. A aprovação foi crucial para garantir que a Ucrânia pudesse receber munições e outros recursos necessários para enfrentar a ofensiva russa e manter a resistência no conflito em 2024.
Mas não existe nenhuma garantia de que a ajuda financeira à Ucrânia se manterá em níveis mínimos até o final do ano fiscal de 2024-2025, e muito menos no próximo ano fiscal.
Cancelamento da Reunião em Ramstein
Durante sua recente visita aos EUA, em setembro de 2024, Volodymyr Zelensky apresentou seu “Plano para a Vitória” em Washington, mas a recepção foi morna. Embora tenha conseguido reafirmar o compromisso dos Estados Unidos com a defesa da Ucrânia, ele enfrentou resistência em relação ao uso de armas ocidentais de longo alcance contra alvos na Rússia. Biden reiterou seu apoio, mas com restrições, refletindo as complexidades políticas e militares envolvidas no apoio contínuo à Kiev. Ao final da visita, Biden prometeu analisar o tema em uma reunião com os aliados da OTAN na Alemanha, a ser realizada na base da Força Aérea alemã em Ramstein, que estava marcada para o dia 12 de outubro de 2024.
Mas no início de outubro, a reunião de Ramstein foi cancelada. Este cancelamento foi um sinal das dificuldades em coordenar a ajuda internacional e das frustrações com a lentidão nas entregas de sistemas de defesa prometidos.
O cancelamento da reunião da OTAN em Ramstein foi um sinal muito negativo para as esperanças de mais apoio de Zelensky, em um momento em que o apoio interno do presidente ucraniano vem sendo erodido, fruto das dificuldades econômicas e da mobilização forçada de uma população que se mostra cada vez mais descrente. E em um momento em que a Rússia vem realizando avanços modestos, mas constantes, no campo de batalha.
A reunião tinha como objetivo discutir o “Plano para a Vitória” do presidente Zelensky, que apresenta estratégias para fortalecer a defesa da Ucrânia contra a invasão russa. A opinião geral é que ao plano de Zelensky falta clareza na definição do básico: o que seria vitória ucraniana, e como ela poderia ser obtida?
Inicialmente, a participação do principal ator, o presidente Biden, foi cancelada devido ao furacão Milton, que ocorria no estado da Flórida. A ausência de Biden era justificável, mas não a do secretário de Estado Blinken, cujo cancelamento da participação, sem maiores argumentos, sepultou de vez a reunião.
Mais uma vez, ficou claro que o tema Ucrânia estava deixando de ser prioritário para a política externa dos Estados Unidos, mesmo em uma administração democrata.
O cancelamento da reunião em Ramstein foi um golpe para os esforços de coordenação internacional de apoio à Ucrânia. A reunião era vista como uma oportunidade crucial para alinhar as estratégias dos aliados e garantir um fluxo contínuo de ajuda militar e financeira.
Sem essa coordenação, a Ucrânia enfrenta desafios adicionais para obter o apoio necessário, especialmente no momento em que começam a faltar meios financeiros e materiais para a resistência à ofensiva russa.
Conclusão
Podemos dizer que o Projeto Ucrânia chegou ao fim?
Todas as tendências registradas desde a demissão de Victoria Nuland nos apontam para um cenário onde a política externa dos EUA não está priorizando a expansão a OTAN. Quanto a isso não há dúvida.
Entretanto, é improvável que os Estados Unidos deixem Zelensky entregue à sua própria sorte, pois isso seria uma sinalização suicida para qualquer país que necessite de uma aliança com os EUA.
Mas o que se observa são outras prioridades encontrando maior atenção da Casa Branca: o Oriente Médio e a China. E isso sem falar no peso da política interna, onde o envio de recursos para a Ucrânia a fundo perdido se mostra altamente negativo para a opinião pública norte-americana.
A política do “America First” aparentemente extrapolou a campanha de Trump e parece ecoar também entre os democratas.
Mas além de tudo o que já apresentamos, o que se observa é que a agonia do Projeto Ucrânia já contamina os principais e mais importantes aliados ucranianos da OTAN. O primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, vem sinalizando restrições ao fornecimento de novas remessas de equipamentos alemães em uso atualmente pela Ucrânia, tais como os carros de combate Leopard 2 e obuseiros de artilharia, assim como de novos pedidos, como os mísseis Taurus.
Já o primeiro-ministro britânico negou a autorização do uso do míssil britânico Storm Shadow contra alvos no interior da Rússia.
O presidente Macron, da França, entrou mudo e saiu calado de sua mais recente reunião com Zelensky.
Esses eventos refletem os desafios contínuos que os Estados Unidos passaram a enfrentar em sua política externa para a Ucrânia, fazendo a balança tender, de um lado, para a necessidade de apoiar Kiev contra a invasão russa e, por outro, para as limitações internas, a pressão política doméstica e outras prioridades do tabuleiro internacional. A transformação hegemônica global parece ser um fenômeno para o qual nem mesmo uma superpotência como os EUA estava preparada para lidar.
As consequências da demissão da gerente do Projeto Ucrânia, Victoria Nuland, cada vez ficam mais claras. E a saída de Nuland se revela não como uma causa de seu fim, mas mais como um sintoma. Fica transparente que a demissão de Nuland teve menos a ver com questões gerenciais ou pessoais, mas sim com uma mudança, uma verdadeira guinada na geoestratégia dos EUA para a Eurásia.
Zelensky vem afirmando que a guerra precisa ser concluída antes do fim de 2025. Como fazer isso sem o peso político de um Projeto Ucrânia para apoiá-lo?
Talvez seja hora de Zelensky conversar com aqueles que propõem um processo de paz, antes que seja tarde demais.
FOTO: Gunjan Raj Giri/Wikimedia Commons/CC BY-SA 4.0
FONTE: https://velhogeneral.com.br/2024/10/15/a-geoestrategia-dos-eua-para-a-eurasia-e-o-fim-do-projeto-ucrania/