Ainda que longe da plena realização, a existência de fluxos comerciais e investimentos comuns fora do eixo do dólar — uma das principais metas do Brics — não são algo inatingível.
Enquanto se realiza a 16ª Conferência de Cúpula dos BRICS em Kazan, Rússia, a América Latina observa (atentamente) na expansão do bloco, uma forma de escapar das limitadas possibilidades de presença no Sistema Internacional através da simples validação do “ocidente”. Explico, e o próprio papel dúbio do país reflete isso. Se a política externa nacional estivesse concentrada no Itamaraty, toda a agenda além-fronteiras dos ministérios seria coordenada pelo chanceler Mauro Vieira, pelo assessor especial Celso Amorim e um grupo de conselheiros de mais alto nível. Este órgão de assessoria especial poderia ter uma existência colegiada, mas necessariamente resolutiva. Hoje, se algo assim existe, é para consulta e não tomada de decisão.
Os ministros da Fazenda (Fernando Haddad) e Simone Tebet (Planejamento) não se deslocaram para a Rússia e sim para os Estados Unidos, atendendo à agenda do FMI, Banco Mundial e também do G20. A outra preocupação é com a retomada do grau de investimento, a nota máxima das agências de “análise de risco”, ou a chantagem organizada pela Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s. Quem se recorda na nota máxima dada pelas empresas de “análise” tanto para o Bear Sterns em março de 2008 (duas semanas antes da falência fraudulenta) e do Lehman Brothers (na mesma situação, falindo com fraude em setembro de 2008) sabe o quanto é negociada esta nota.
O bloco dos BRICS, em tese, seria (e é) a grande oportunidade deste momento da economia mundial para os países poderem se livrar dessa amarra. O Brasil tem sua capacidade produtiva, as finanças públicas e as políticas de distribuição de renda sequestradas pelos especuladores, pelos chantagistas do cassino financeiro. Nosso fluxo comercial é muito intenso no sentido da Ásia (em geral) e da China (em específico). Podemos seguir fazendo isso para “sempre”, exportando commodities através de uma cadeia de valor e suprimentos transnacionalizada (como nos insumos, venenos e sementes transgênicas) e pagando royalties sem fim. Ou podemos tentar alocar – sobrepor – pouco a pouco o fluxo comercial espelhado no financeiro e ampliar as trocas internacionais fora do padrão do dólar.
Em outro momento, não muito distante – nenhum pouco distante, na verdade, a depender da capacidade de investimento do Novo Banco de Desenvolvimento (o NDB, apelidado de Banco dos BRICS) – o bloco e o Brasil podem instalar ou ampliar novas cadeias de valor. O caso da Bolívia é gritante. O país vive uma crise de ingresso de dólares justamente porque está com menor produtividade na produção de commodities de energia. A YPFB (equivalente à Petrobrás do país), sob controle do governo central desde a renacionalização em maio de 2006, financiou a economia nacional (a que mais cresceu e com maior estabilidade por 15 anos) e agora precisa de reinvestimento. Uma saída: a YLB, a estatal de lítio associada com uma empresa chinesa e desenvolvendo baterias de alta performance e centro de medicina complexa. Os capitais investidores são chineses (e também russos), mas poderíamos ter um consórcio de lítio sul-americano cofinanciado pelo NDB.
Exemplos são vários, assim como os desafios do desenvolvimento e soberania latino-americanos, considerando o peso do império hegemônico dos EUA no meio de nós.
BRICS, a China e a arquitetura financeira
O evento de três dias (de 22 a 24 de outubro) tem a participação de até 36 países, dos quais 24 representados pela liderança máxima. A ampliação do bloco também implica contrabalançar o peso enorme da segunda maior economia do planeta. Em 2022, a China representava quase 70% do PIB acumulado no bloco. Assim, a ampliação foi (e é) uma necessidade, para fazer valer a posição de quem está sob sanções diretas dos Estados Unidos (e OTAN), que exercem um controle absoluto sobre o Sistema Swift e, por tabela, o sistema de seguros do comércio internacional através do emprego do dólar estadunidense.
Rússia, China, Índia, Brasil e África do Sul se fazem presentes na 16ª Conferência. Também atendem o encontro Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. Os outros novos membros aceitos em 2023 não chegaram a aderir de modo pleno. A Argentina recuou da decisão, em mais uma estupidez do governo Javier Milei. Já a Arábia Saudita, segue em posição recalcitrante, ainda “analisando” as possibilidades.
Turquia, Bielorrússia, Armênia, Cazaquistão, Mongólia, Congo, Vietnã e Laos estão em Kazan com delegações de alto nível. Da América Latina, além do Brasil, temos Bolívia, Venezuela e Cuba. Uma lista de países “parceiros”, uma espécie de segundo nível de aliança (sem poder de veto), sairá da conferência, ressalvando que o Brasil insiste em não fazer um espelho do G-77 (a continuidade moderna do Grupo dos Não Alinhados). Existe uma real possibilidade de que Estados com maioria islâmica e pleno dinamismo econômico (como Malásia e Indonésia) façam a adesão da “parceria”. Mesmo que saia uma lista “definitiva” os ajustes se dão nos projetos de investimento comum, conforme viemos ressaltando em seguidos textos e análises.
O “risco do bloco se tornar um bastião anti-ocidental” se trata da propaganda sistemática dos conglomerados de mídia pautados pelo Departamento de Estado. Mesmo assim, se encontram vestígios de razoabilidade em alguns difusores do norte hegemônico. Segundo a análise da Fundação Friedrich Naumann (em tese um think tank em defesa da democracia liberal ocidental), a proposta de países sancionados é ampliar uma arquitetura financeira fora do padrão do dólar. Vejamos:
“O trabalho centra-se agora principalmente na criação de sistemas de pagamento e liquidação (BRICS Pay) para a utilização de moedas nacionais. Para tanto, foi formado um Consórcio BRICS Pay para desenvolver soluções para clientes privados/varejo (BRICS Pay QR), clientes empresariais (BRICS Pay B2B) e BRICS Clear (sistema de liquidação digital intergovernamental para transações transfronteiriças de títulos com base na tecnologia blockchain). A Rússia e o Irã, novo membro dos BRICS, ambos sujeitos a sanções rigorosas por parte do Ocidente, têm um forte interesse em sistemas alternativos de pagamento e liquidação que não sejam controlados pelo Ocidente.
Em contraste, os outros membros do BRICS, que têm relações comerciais ativas com o Ocidente, só estão interessados num certo grau de desdolarização e na introdução da liquidação com moedas nacionais e digitais até certo ponto e apenas na medida em que isso ofereça proteção contra sanções e sanções secundárias e pode facilitar a atração de investimentos adicionais. Portanto, devido aos diferentes pontos de partida e interesses, bem como aos desafios técnicos, é de esperar também aqui um longo processo de coordenação e implementação”.
É preciso ampliar um sistema fora do dólar na América Latina
Ainda que longe da plena realização, a existência de fluxos comerciais e investimentos comuns fora do eixo do dólar não são algo inatingível. Países sancionados como Irã e Rússia se aproximam “naturalmente” de Cuba e também da Venezuela e Nicarágua. Por outro caminho, Brasil e Bolívia podem avançar em projetos produtivos dentro do modelo do NDB, e com condições de garantias e securitização mais fortes.
Qualquer iniciativa neste âmbito fortalece a economia dos BRICS para além da venda de commodities para a China. E, mesmo com toda a gritaria e chiadeira da mídia pró “ocidente” no país, o avanço deste circuito é sim um reforço multipolar e diminui a presença da hegemonia imperialista nas economias latino-americanas.
Foto: Maksim Bogodvid / Agência Brics Rússia
FONTE: https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brics-possibilita-a-america-latina-uma-nova-geoeconomia-livre-do-controle-dos-eua/