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Dossiê das violações dos direitos humanos no trabalho uberizado

“Este dossiê tem como objetivo denunciar violações dos direitos humanos associadas ao trabalho dos motofretistas, também conhecidos como motoboys e, mais recentemente, como entregadores. A análise evidencia os elementos estruturantes e as consequências da uberização do trabalho, fenômeno que não se restringe aos motoboys; pelo contrário, apresenta-se como tendência que atravessa o mundo do trabalho como um todo. Nesse sentido, o dossiê se constitui como um instrumento para o poder público e os atores da sociedade civil envolvidos na promoção da vida digna e justa para todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Os resultados apresentados referem-se à pesquisa realizada pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp. A pesquisa é um desdobramento de uma Ação de Saúde realizada pela Força Tarefa da Unicamp contra a covid–19 em janeiro de 2021, dirigida a esses trabalhadores. Ela identificou condições de trabalho e saúde precárias, que exigiam melhor compreensão. Em 2023 foi então realizada a investigação com 200 motofretistas, analisando-se múltiplos aspectos sobre condições laborais e sanitárias.

O dossiê está estruturado da seguinte maneira: 1) trata-se inicialmente de aspectos conceituais e estudos recentes sobre a uberização do trabalho, tendo como objetivo prover instrumentos analíticos para o debate público sobre a uberização do trabalho; 2) são apresentadas uma síntese dos resultados seguida de análise detalhada da pesquisa com os motofretistas na cidade de Campinas; 3) no final, são feitas recomendações para o enfrentamento da situação encontrada e da uberização do trabalho em geral.

O trabalho digno é construtor de cidadania, em sua dimensão individual e comunitária. A Declaração Universal de Direitos Humanos (Assembleia Geral ONU, 1948), proclamada na Assembleia Geral das Nações Unidas (idem, Resolução 217, A3) em 10 de dezembro de 1948, guia o reconhecimento da violação dos direitos humanos associada ao trabalho aqui escrutinado. A Declaração inicia com o reconhecimento de todas as pessoas como membros do que denomina família humana e de que dignidade e direitos iguais na sociedade são bens inalienáveis e fundamentos da liberdade, justiça e paz no mundo. Composta por 30 artigos que descrevem as condições para a vida digna, contém em seu artigo 23º a referência ao trabalho, que considera que:

1. todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego;
2. todo ser humano, sem distinção, têm o direito a igual remuneração por igual trabalho;
3. todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social;
4. todo ser humano tem o direito de organizar sindicatos e neles ingressar para a proteção de seus interesses.

A investigação que resulta neste dossiê constitui uma das importantes iniciativas que hoje tecem o campo de pesquisa sobre a uberização do trabalho e que agrega pesquisadoras e pesquisadores de todo o país. Diversas pesquisas evidenciam nos últimos anos que os processos de uberização de diferentes categorias promovem remunerações injustas e cada vez mais rebaixadas; condições de trabalho indignas, desigualdades complexas e obscuras entre os trabalhadores no que se refere a seus ganhos e ao acesso ao trabalho, além da centralização do acesso ao trabalho associada aos oligopólios das empresas.

Os resultados apresentados demonstram as violações dos direitos humanos, hoje cotidianas e disseminadas, que permeiam o trabalho dos motofretistas. Esses trabalhadores têm sua dignidade e integridade feridas em múltiplos aspectos, que podem e devem ser freados e combatidos pelo poder público. Novas metodologias e procedimentos foram utilizados para investigar a relação entre trabalho e saúde em seus em diversas dimensões. A pesquisa evidencia que a uberização aprofunda mecanismos de intensificação do trabalho, de extensão de jornada laboral, de transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além de ser um vetor poderoso na eliminação de direitos e garantias associados ao trabalho. A degradação do trabalho dos motofretistas associa-se à degradação da saúde, além de acarretar o incremento de acidentes de trânsito associados a motocicletas (e também bicicletas), inclusive aqueles com vítimas fatais.

A uberização apresenta-se como uma tendência que permeia as relações de trabalho em geral, mas sua concretização se dá de modo heterogêneo, de acordo com a articulação de desigualdades em contextos locais, regionais e nacionais. O dossiê apresenta os efeitos ainda mais deletérios que incidem especificamente em trabalhadores negros no Brasil. Em outras palavras: as mudanças contemporâneas do trabalho atingem os trabalhadores e trabalhadoras em geral, promovendo processos de precarização e degradação, mas esses processos ocorrem de forma intensa, acelerada e menos regulada com aqueles que estão submetidos e expostos de forma mais profunda à articulação das abissais desigualdades e injustiças sociais do país. No Brasil, portanto, negras e negros estão na linha de frente do avassalador processo de uberização. Nesse sentido, essa nova forma de organização do trabalho hoje aprofunda desigualdades raciais e seus modos de reprodução, transferindo aos trabalhadores negros condições ainda mais precárias e precarizadas, desprotegidas e cada vez mais arriscadas e insalubres.

Trabalhadores negros são a maioria dos motoboys e bikeboys. A pesquisa desvela um cenário de muita gravidade envolvendo trabalhadores sem acesso a água potável, banheiro, pontos de descanso; apresentam desidratação, incidências alarmantes de pressão alta, de alimentação inapropriada e de acidentes, em especial acidentes graves; jornadas superextensas de trabalho, condições de trabalho instáveis e inseguras que os colocam em permanente estresse; soma-se a isso o rebaixamento do valor de seu trabalho. Esse rebaixamento garante que hoje estejam inseridos de forma ampliada nas mais diversas cadeias produtivas e na reprodução social de outros trabalhadores e trabalhadoras, mas de forma cada vez mais precarizada.

Como dito, em sua maioria negros, esses trabalhadores colocam sua vida e sua integridade em risco cotidianamente pelas ruas da cidade, arcando em seus próprios corpos com formas contemporâneas de exploração que precisam ser reconhecidas e freadas. Reconhecer a subordinação praticada pelas empresas, responsabilizá-las e regular esse trabalho é garantir condições mínimas de saúde, segurança e dignidade aos motofretistas e a outros trabalhadores que já estão sendo submetidos aos processos de uberização. É, também, reconhecer os custos em suas dimensões psicossocial, racial, econômica que a uberização do trabalho acarreta para a sociedade e para o Estado. Hoje, o sistema de saúde torna-se, também ele, vítima da uberização, recolhendo, salvando e enterrando aqueles que dão a vida pela circulação de mercadorias como modo de sobrevivência.”

ACESSE O DOISSIÊ AQUI:

Dossiê das violações dos direitos humanos no trabalho uberizado