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Entre tarifas e algoritmos: a nova guerra pelo mundo

“A economia global já se tornou digital, enquanto os marcos regulatórios seguem presos à era analógica”, diz Sara Goes.

A entrevista de Ladislau Dowbor ao programa Boa Noite 247 (11 de abril) pode ser lida como uma aula de economia política em tempos de transição global. Mas quem escutou com atenção percebeu que, sob os dados do PIB e das tarifas, havia uma crítica aguda, ainda que implícita, ao sistema global de comunicação, à infraestrutura digital e à forma como se molda o imaginário social no século XXI.Esses elementos ganham ainda mais nitidez no livro Os desafios da revolução digital: libertar o conhecimento para o bem comum, publicado por Dowbor em 2024. Para o professor, não estamos mais apenas diante de “deformações” do capitalismo industrial – o que se articula hoje é um novo modo de produção, cujo eixo é o conhecimento, não mais a terra ou a máquina (DOWBOR, 2024). A economia global já se tornou digital, enquanto os marcos regulatórios seguem presos à era analógica. Essa defasagem entre estrutura econômica e governança institucional é, segundo Dowbor, a principal causa da nossa atual crise civilizatória.Na entrevista, Dowbor partiu de um dado preciso: a China já superou os Estados Unidos em produto interno bruto medido por paridade de poder de compra desde 2017. “O PIB da China hoje, tal como o Fundo Monetário apresenta, é trinta e sete trilhões de dólares. Os Estados Unidos é 29 trilhões”, afirmou. Mais revelador do que o número bruto, no entanto, é o que ele denuncia como ilusão cambial: ao ignorar o valor real da produção, o dólar distorce a realidade econômica em favor da hegemonia estado-unidense. Essa distorção é, antes de tudo, comunicacional — ela estrutura narrativas, produz consensos e oculta deslocamentos históricos.

Ao afirmar que “essas tarifas não têm racionalidade econômica, é o porte”, Dowbor nos convida a entender a política de Trump como um gesto simbólico de dominação. A economia, nesse caso, funciona como linguagem, e a linguagem como política externa. Essa afirmação ecoa o diagnóstico do livro: “o eixo estruturante passa agora a ser a informação, o conhecimento, a tecnologia, as finanças, a economia imaterial” (DOWBOR, 2024, p. 9-10).

Por trás das tarifas, esconde-se um ecossistema muito mais sofisticado de dominação: os fluxos de dados, os sistemas de recomendação, os algoritmos que nos dizem o que ler, o que comprar, em quem votar. Na formulação de Dowbor, o que temos é uma economia de pedágio digital: “Os rentistas ganham não tanto pelos serviços que prestam, como pela obrigação de todos passarem pelas suas catracas” (p. 21). Os dados, que poderiam ser compartilhados como bem comum, são capturados por plataformas privadas, transformando-se em fonte de renda para poucos.Quando o economista aponta que dez grupos, majoritariamente estado-unidenses, administram o equivalente a metade do PIB mundial em ativos financeiros, ele descreve o coração da financeirização. Mas quando acrescenta que esses mesmos grupos controlam os sistemas de informação, ele revela algo ainda mais grave: a convergência entre capital financeiro e infraestrutura comunicacional. “Eles administram o sistema de comunicação, o sistema de informação do planeta de maneira extremamente poderosa e penetram, formam visões de mundo das pessoas”, disse ele ao Boa Noite 247. No livro, essa análise aparece como uma virada histórica: “Hoje, a agricultura e a indústria não deixam de ser importantes, mas quem manda são os teclados e o sistema de controle digital.” (p. 4).O novo modo de produção descrito por Dowbor é informacional, extrativo e rentista. Não se trata mais da produção de bens, mas da gestão de sinais magnéticos, algoritmos, dados e patentes. “Os gigantes corporativos que hoje controlam o planeta não são donos de empresas concretas, são donos de papéis – hoje sinais magnéticos – que lhes dão direitos sobre elas” (p. 21). Trata-se de um sistema de apropriação indireta, sem base produtiva, mas com enorme poder sobre os circuitos da vida cotidiana e do pensamento.Não estamos apenas diante de uma disputa entre duas potências econômicas. O que se confrontam são duas lógicas de mundo: uma baseada na hegemonia militar e na financeirização da informação; outra que tenta articular uma nova governança do conhecimento, ainda incipiente. A guerra híbrida contemporânea não se dá apenas nos campos da diplomacia ou do mercado. Ela passa pelos feeds de notícias, pelas plataformas de buscapelos memes e campanhas emocionais que ativam afetos negativos. Ao dizer que essas corporações têm contratos com o sistema de defesa dos EUA, Dowbor explicita uma aliança invisível entre os algoritmos e os arsenais.Essa realidade torna urgente a defesa da soberania informacional — termo que ganha centralidade nos debates atuais sobre segurança nacional. “O problema não é econômico, é de governança. A gestão pública não é o problema, é o caminho” (p. 8). A proposta brasileira de taxar as Big Techs em 2025 foi uma tentativa de enfrentamento, mas a pressão estado-unidense a interrompeu, evidenciando a fragilidade das democracias periféricas diante do novo imperialismo algorítmico.

Ao comentar o número de bases militares dos EUA espalhadas pelo planeta — mais de oitocentas — Dowbor nos convida a vê-las também como infraestruturas narrativas. Elas reforçam o mito do “dono do mundo” e sustentam a performance da autoridade global. “O problema não é o Trump. Por trás do Trump, tem uns treze bilionários”, afirmou. No livro, a crítica se aprofunda: “gerou-se uma classe de rentistas que se apropriam de cada movimento, colocando juros, tarifas,sobrepreços” (p. 7). Não é uma questão de figuras individuais, mas de uma lógica sistêmica.

Nesse contexto, o papel da comunicação não é secundário. É central. A manipulação da percepção, a normalização da desigualdade, a transformação da política em espetáculo de guerra tarifária: tudo isso só se sustenta por meio de operações comunicacionais complexas, que exploram os afetos, os vieses cognitivos e os vazios informacionais.

Por isso, o combate às grandes assimetrias globais exige mais do que reformas fiscais. É necessário investir em defesa cognitiva e cultural diante das novas armas do poder digital. Essa reflexão é aprofundada no artigo “As pílulas mágicas de soluções incríveis para o grande problema comunicacional”, coassinado por mim e por Reynaldo Aragon, no qual analisamos como a busca por soluções simplistas e tecnocêntricas tende a despolitizar o debate sobre soberania informacional e obscurecer os reais centros de poder algorítmico.

Por isso, o combate às grandes assimetrias globais exige mais do que reformas fiscais. É necessário investir em ciência, tecnologia e inovação pública como instrumentos estratégicos de defesa nacional. Não se trata apenas de dominar ferramentas, mas de compreender e enfrentar, com inteligência institucional e pesquisa aplicada, os dispositivos de manipulação que operam sobre a percepção, os afetos e as decisões políticas da população. Centros de pesquisa, universidades, institutos públicos e projetos de tecnologia social precisam ser vistos como pilares da soberania, não como custos, mas como trincheiras de futuro. Como afirma Dowbor, “quando o principal fator de produção passa a ser o conhecimento, este pode ser compartilhado sem custos adicionais. Diferentemente dos bens físicos, o conhecimento que compartilho continua comigo” (DOWBOR, 2024, p. 11). É a partir dessa generosidade estrutural do conhecimento que podemos construir outra arquitetura política, comunicacional e econômica.

O conflito entre EUA e China é, sim, econômico. Mas como nos ensina Dowbor, é também — e talvez sobretudo — comunicacional. O futuro será decidido por quem tiver coragem de articular ambos os planos: o das finanças e o das narrativas; o do hardware e o do simbólico; o das tarifas e o das palavras.

Essa nova arquitetura de dominação descrita por Dowbor — baseada não apenas em capital financeiro, mas na captura da informação e no controle das infraestruturas digitais — nos obriga a pensar urgentemente em alternativas públicas de organização tecnológica. Como afirma o autor repetidamente em livros, artigos e entrevistas, o que está em jogo é a nossa capacidade de assegurar um processo decisório democrático em escala planetária. Nesse contexto, não basta disputar narrativas: é preciso disputar os meios que as tornam possíveis.

A transição proposta por Dowbor é radical no melhor sentido da palavra: o conceito de revolução digital permite pensar a era atual não como uma deformação do capitalismo industrial, mas como um novo modo de produção. Esse novo modo de produção é centrado na informação e no conhecimento como vetores centrais da criação de valor e, portanto, da dominação. Em vez de explorar apenas trabalho físico ou território, a nova economia explora a atenção, os dados, a previsibilidade comportamental.

Se essa lógica já reorganiza o mundo em torno de plataformas digitais privadas, ela também escancara a necessidade de infraestruturas públicas digitais como resposta soberana à financeirização da informação. Uma plataforma pública, em um país de dimensões continentais e altíssima desigualdade como o Brasil, representa mais do que um instrumento técnico: pode se tornar uma trincheira estratégica na defesa da democracia e da cidadania.Nesse ponto, cabe mencionar – ainda que brevemente – o caso da plataforma gov.br. Com mais de 180 milhões de usuários ativos, ela se consolidou como um espaço de alta capilaridade e centralidade no cotidiano brasileiro. Sua existência, contudo, ainda não foi plenamente compreendida como potencial campo de disputa geopolítica, cognitiva e cultural. Se utilizada com visão estratégica, pode ultrapassar sua função burocrática e tornar-se ferramenta central na defesa informacional do país, reunindo infraestrutura, legitimidade estatal e potencial formativo. Mas, até aqui, sua lógica segue majoritariamente transacional e técnica, aquém de sua capacidade pedagógica, participativa e política.A leitura que Dowbor propõe é útil para pensar esse tipo de virada: “a infraestrutura técnica mudou radicalmente, mas as instituições continuam no século passado” (p. 8). A plataforma digital de um Estado não pode se limitar a replicar digitalmente a lógica analógica da fila e do balcão. Ela precisa ser repensada como espaço de construção coletiva da soberania informacional, como rede de letramento democrático, enfrentamento da desinformação, promoção do bem comum digital.É por isso que a pergunta que se coloca não é apenas o que se faz com o gov.br, mas o que deixamos de fazer com ele. E, ao mesmo tempo, o que outros atores — privados, estrangeiros ou desinformativos — estão fazendo enquanto o Estado hesita. Como destaca Dowbor: “Nosso problema não é econômico, é de governança. A gestão pública não é o problema, é o caminho.” (p. 8). E a governança da informação hoje define os rumos da política, da economia e da própria coesão social.Portanto, é nesse território híbrido, entre a prestação de serviços e a defesa democrática, que devemos situar as plataformas digitais públicas. Elas não podem ser neutras num cenário de guerra informacional. A sua estrutura técnica pode ser, e precisa ser reaproveitada como infraestrutura de emancipação. E isso não é delírio ou utopia: é soberania em sua forma mais atualizada.Nos próximos passos, será necessário explorar como o Brasil pode, de fato, avançar nessa direção, utilizando recursos já existentes para transformar sua maior plataforma digital pública em eixo estruturante de um novo pacto informacional. O que está em jogo não é apenas eficiência, mas a possibilidade de reinventar o Estado a partir da revolução digital, em diálogo com a democracia, a cultura e a justiça cognitiva.

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Para acessar o livro do professor Ladislau Dowbor: “Os desafios da revolução digital. Libertar o conhecimento para o bem comum”: https://dowbor.org/2024/06/revolucao-digital-uma-sociedade-a-beira-de-rupturas.html

Foto: Facebook do professor Ladislau Dowbor

FONTE: https://www.brasil247.com/blog/entre-tarifas-e-algoritmos-a-nova-guerra-pelo-mundo