“Se já é grave tolerar a violência do Estado contra seu povo, mais ainda é permitir que atos de violência fiquem impunes”, escreve Alfredo Attié.
Enquanto a concepção e a prática da segurança pública permanecer militarizada o Estado brasileiro, por meio de sua polícia – que deveria ter o monopólio legítimo do uso da violência apenas para defender as pessoas – , continuará inimigo do povo, sobretudo dos mais pobres e vulneráveis.
A militarização da segurança é uma contradição em termos: a segurança é – e deveria sempre ser – civil, isto é, cidadã, empreendida e executada pelo conjunto da cidadania, para criar um ambiente de confiança no interior da sociedade, de tal sorte que nenhuma pessoa possa incomodar, assediar, ameaçar, molestar ou ferir outras pessoas, nem prejudicar ninguém, no exercício de seus direitos e atividades cotidianas.
Militarizar a segurança significa confundir segurança com defesa, envolvendo o conjunto das forças armadas, por meio de um de seus órgãos, a polícia militar em atividade de combate à cidadania, como se se tratasse de defender o País de um ataque estrangeiro. E assim se pensa e executa a segurança, no Brasil, como uma força armada, altamente violenta, contra o povo, na defesa do patrimônio de uma minoria, a defesa dos que têm muito contra os que nada ou muito pouco possuem.
Mais grave é a existência de uma justiça militar – o que também configura uma contradição em termos. Uma justiça que deixa de ser justiça, para se tornar órgão administrativo de controle disciplinar, porque não é universal e igual para todos, mas destinada a pensar o mundo como dividido entre duas ordens de sujeitos, aplicando à segurança, que deveria ser dos cidadãos e cidadãs, um ordenamento artificial, voltado a pensar apenas e tão somente a atuação de uma corporação militar, isolando-a do controle e da fiscalização da cidadania.
É inaceitável que uma justiça corporativa julgue atos cometidos por militares contra civis. É inaceitável uma justiça marcial em tempo de paz, que atue como se as forças armadas estivessem, no exercício, portanto, ilegítimo da segurança – que deveria ser pública e cidadã -,, praticando atos de defesa contra inimigos do Estado.
A justiça militar ou marcial somente se justifica em tempo de guerra. Isso de modo muito excepcional, tendo em vista que um dos princípios básicos do Estado Democrático de Direito é a paz.
De qualquer modo, se um ato militar ocasiona efeitos para civis, deveria cessar imediatamente a competência da justiça militar, dando lugar à atuação da justiça civil.
Um exemplo lamentável, recente, entre tantos, é o relativo ao homem negro flagrado cometendo furto em um mercado, que, mesmo sem portar nenhuma arma, foi amarrado por policiais e carregado por eles, sob a alegação simples de que teria dito que fugiria e que apanharia a arma dos policiais para os atacar. Teria dito a defesa desses policiais, ainda, que se tratava de procedimento previsto no regulamento de sua atuação como agentes de segurança, fato que levou à absolvição dos policiais, em decisão da justiça militar.
A Constituição brasileira, em seus valores e princípios basilares, que incluem Tratados Internacionais, deveres, direitos e políticas públicas, viu-se contrariada de modo radical.
A atuação policial violenta, desmedida, humilhante, viola direitos humanos, como já decidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos, interpretando a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que não é apenas firmada pelo Brasil, mas é parte integrante de nossa Constituição.
Se já é grave tolerar a violência do Estado contra seu povo, mais ainda é permitir que atos de violência fiquem impunes.
Uma reforma estrutural e cultural da segurança pública em nosso País se mostra cada dia mais urgente. Deve abranger a formulação de uma concepção constitucional não apenas da segurança, mas sobretudo da justiça, condizente com a cidadania e os princípios do Estado Democrático de Direito e com a ordem internacional dos Direitos Humanos.”
Foto: GovSP
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/pelo-fim-da-pm-e-da-justica-militar