Andrei Martyanov construiu para si um lugar singular e consagrado no pensamento crítico profundo sobre questões de guerra e paz.
Em seus livros anteriores, em seu blog Reminiscence of the Future e em outros incontáveis podcasts, ele se converteu na fonte indispensável no que se trata do funcionamento interno da Operação Militar Especial (OME) na Ucrânia, bem como do Grande Quadro da Guerra por Procuração entre os Estados Unidos e seus vassalos do Ocidente Coletivo contra a Rússia. Naturalmente, cada um dos livros lançados por esse encantador ser humano é digno de admiração – e este último, America’s Final War (a Guerra Final da América), o quarto de uma série, deve ser visto como o ponto culminante de sua cuidadosamente detalhada análise de uma verdadeira revolução em assuntos militares que deixou muito para trás a “nação indispensável”.
Logo de início, Martyanov trata da russofobia – e como essa esmagadora patologia que acomete a totalidade do Ocidente, de uma escala totalmente desproporcional às meras contradições geopolíticas entre nações e estados”, vem assumindo uma dimensão metafísica oriunda de seus componentes raciais, religiosos e culturais”.
A russofobia só fez se exacerbar frente aos desagradáveis fatos concretos relativos à “Real Revolução em Assuntos Militares: uma verdadeira mudança de paradigma” em questões bélicas.
Já no prefácio, Martyanov traça um esboço do atual estado de coisas, ou aquilo que recentemente define como uma Guerra DE Terror:
“A economia e as forças armadas atuais dos Estados Unidos não serão capazes de lutar uma guerra convencional contra a Rússia, e enfrentariam uma derrota caso tentassem. De modo que os Estados Unidos, aliados a países ocidentais, recorreram ao terrorismo”.
Acrescente-se a isso que, no que diz respeito aos atuais choques por procuração, “a OTAN é incapaz de lutar uma verdadeira guerra do século XXI”. E até mesmo a “superioridade dos Estados Unidos em constelações de satélites, que em breve será superada, bem como a capacidade da OTAN de voar impunemente no espaço aéreo internacional sobre o Mar Negro, contam pouco em uma guerra real, na qual a OTAN ficaria enceguecida, tendo seu Comando e Controle desmantelados”.
“O melhor aparato de avaliação estratégica do mundo”
Martyanov faz uma retrospectiva necessária, recuando até a situação anterior à OME, em fins de 2021, quando as Forças Armadas da Ucrânia estavam se concentrando nas fronteiras de Donetsk e Lugansk: “Em uma derradeira tentativa de evitar um confronto militar com o que àquela época representava a melhor força por procuração dos Estados Unidos (e do Ocidente) de toda a história – treinados e equipados com muitos elementos explosivos C-4” – a Rússia apresentou aos Estados Unidos, em dezembro de 2021, aquilo que Martyanov descreve como “eufemismos diplomáticos para exigências feitas a Washington sobre garantias de segurança mútua”: a notória “indivisibilidade da segurança” proposta para a Europa e o espaço pós- soviético.
Martyanov está correto ao avaliar que isso não era exatamente inédito, tratando-se de “uma reiteração dos mesmos pontos nos quais a Rússia vinha insistindo desde a década de 1990. O ponto crucial, é claro, era a não-expansão da OTAN, especificamente aplicada à Ucrânia, que “desde 2013 vinha se tornando de fato uma base operacional avançada da OTAN“.
Essa foi a jogada diplomática de Putin para evitar a guerra. Afinal, o establishment político-militar russo vinha percebendo em que direção os cães da guerra estavam latindo e foram capazes de prever os desdobramentos, “com base na excelente inteligência, e no que talvez fosse o melhor aparato de avaliação estratégica de todo o mundo – o Estado-Maior da Rússia, o Serviço de Inteligência Externa (SRV), o Serviço Federal de Segurança (FSB) e o Ministério de Relações Exteriores”.
Avançando no tempo, o que hoje ocorre no solo negro da Novorossiya – a iminente humilhação da OTAN – só poderia ser entendida em razão de “os capitães do Ocidente combinado serem essencialmente hiperincompetentes”: “as instituições acadêmicas e analíticas ocidentais “não apenas “não foram projetadas” para pensar estrategicamente em termos da balança de poder mundial e de questões de guerra e paz, mas ignoram totalmente a “Ciência da Governança como a Arte de Governar e a Arte Militar”.
A Rússia, por outro lado, aplicou a governança criativa “que se manifesta como arte”, não apenas para “prever e prevenir” as ações da OTAN, “mas, especialmente, na preparação econômica e militar” para o embate, “inclusive pelo processo de adaptação constante às mudanças das condições externas e internas”. Podemos chamar a isso de a arte militar que corresponde à intuição geoeconômica de Deng Xiaoping de “cruzar o rio sentindo as pedras”.
Martyanov caracteriza a guerra por procuração na Ucrânia como um espetáculo digno do Estupidistão: “Considerando o histórico de engenharia militar dos principais atores do governo Biden como medíocre na melhor das hipóteses, e inexistente na pior delas, a diferença entre iniciar uma guerra no Vietnã ou no Iraque e iniciar uma guerra às portas da Rússia (…) nem sequer ocorreu a eles” – que não se deram conta de que a Rússia é uma superpotência militar dotada de um complexo de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento extremamente avançado”.
Martyanov está correto ao datar a espetacular “queda” dos Estados Unidos do pedestal da autoproclamada hegemonia militar” à sabotagem do acordo de Istambul ocorrida em abril de 2022 – que estava em vias de ser assinado – quando Boris Johnson, “formado em literatura clássica em Oxford e uma figura apalhaçada com zero conhecimento de arte militar, quanto menos de ciência”, a sabotou seguindo as ordens do combo Biden.
A chegada dos hipersônicos
Em um ponto alto de seu livro, Martyanov mostra o espanto dos americanos quanto aos mísseis supersônicos como o Kh-32, e especialmente ao hipersônico Mach-10, o Mr. Khinzal – que, como ele vinha avisando há anos em seus livros e em seu blog, a Rússia Hipersônica “tornaria inútil qualquer defesa da OTAN em um conflito de grandes proporções”.
Como, por exemplo, em 2018, quando ele afirmou que o extraordinário alcance de 2000 quilômetros do Khinzal torna as aeronaves que transportam esses mísseis, o MiG-31K e o TU-22M3M, invulneráveis à única defesa que um Grupo de Batalha de Porta-aviões dos Estados Unidos, o principal pilar do poderio naval americano, pode pôr em ação”.
À medida que a OME se desenrolava, “a Rússia aumentava vertiginosamente a produção em todo o espectro de seu arsenal de mísseis”: do RS-28 Sarmat, que leva o estratégico hipersônico Avangard, aos Iskanders, P-800 Oniks, 3M22 Zircons hipersônicos“tático-operacionais”, aos mísseis de cruzeiro de navios e submarinos 3M14(M)” e, é claro, ao Sr. Khinzal em pessoa.
Para o complexo de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento da OTAN, as coisas só irão piorar, porque o Khinzal agora é transportado por caça-bombardeiros Su-34, “o que dificulta em muito o trabalho de identificar quais deles transportam Khinzals e não deixa tempo para o acionamento de sinais de alarme”.
Um tema central do livro é a relação entre o Hegêmona e a guerra: “Os Estados Unidos não são apenas uma força expedicionária militar, eles são também uma potência militarista imperial, que luta guerras imperiais de conquista e não trata do conceito de defesa de uma Terra Mãe – ou de uma Pátria – em seus documentos estratégicos e operacionais”.
A conclusão é sombria: “Eles, portanto, não conseguiriam lutar uma guerra convencional combinada de grande escala contra um oponente em iguais ou melhores condições que luta para defender seu próprio país.
Implícito nessa concisa explicação da derrocada dos Estados Unidos/OTAN na Novorossiya está o desproporcional poderio do complexo industrial-militar dos Estados Unidos: “As forças armadas dos Estados Unidos não lutam em defesa da América, elas lutam apenas por conquistas imperiais. Os soldados russos lutam em defesa de sua pátria”.
A supremacia dos EUA em poderio bélico convencional: um blefe
Martyanov, mais uma vez, dá detalhes relativos à real revolução em assuntos militares que atualmente ocorre. Desde fatos marítimos, como o assustador submarino Poseidon – “capaz não apenas de devastar costas, mas também perseguir qualquer grupo de batalha de porta-aviões com impunidade” – ao imenso hiato em termos da “capacidade de instrumentos de destruição” entre a Rússia e a OTAN, acoplada aos conceitos operacionais que deram origem a esses sistemas de armas”.
Quanto ao inevitável confronto entre a Rússia e o Ocidente combinado, liderado pelos Estados Unidos, Martyanov chega ao cerne da questão. Esse confronto já ganhou escala global, e “se espalha por todos os domínios, dos oceanos mundiais até o espaço, abrangendo não apenas capacidades militares, mas também econômicas, financeiras e industriais”.
E, o que é de importância máxima, esse era o quadro operacional ao início da OME, que agora vem se tornando uma mistura tóxica de operação de contraterrorismo e Guerra Quente, potencialmente mais letal que a Guerra Fria 2.0.
Nesse ponto do livro, Martyanov parte para o confronto aberto, afirmando que, à medida que os fatos se desenvolvem, “a tão propagandeada supremacia dos Estados Unidos em termos de poderio militar convencional não passa de um blefe”.
O Hegêmona não conseguiria “lutar contra um oponente em iguais ou melhores condições e vencer essa luta”. Além de fazer os imitadores Brzezinski pirarem de vez, podemos imaginar o desespero do punhado de neocons equipados para entender ao menos uma equação matemática simples.
O único ângulo auspicioso em todo esse tumulto é a aparente relutância do Partido da Guerra dos Estados Unidos a “entrar em confronto aberto com a Rússia”. No entanto, o que resta é tão horrendo quanto uma Guerra Quente: a guerra híbrida do terror – tal como ilustrado pelo sinal verde dado a Kiev para o ataque indiscriminado a civis dentro da Federação Russa.
Quando o livro se aproxima de seu fim, é inevitável que a russofobia voltasse à tona: “O histórico militar da Rússia é revelador: essa nação, consistentemente, derrotou o melhor que o Ocidente poderia lançar contra ela nas horas mais cruciais”. O que é fonte de inveja mesclada a medo. Além do mais, a Rússia continuou Cristã Ortodoxa, o que só faz aumentar o ódio nunca mitigado das elites do Ocidente Coletivo.
Martyanov chega a uma formulação concisa e valiosíssima: “Especialmente depois de Trotsky ter sido exorcizado por Stalin”, a Rússia acabou evoluindo para uma “sociedade de valores morais basicamente conservadores”, em grande parte derivados do Cristianismo Ortodoxo, que faz parte de um ethos histórico não-Cruzado”.
O que quer que venha a acontecer a seguir, a russofobia simplesmente não será apagada da visão de mundo das “elites” anglo-americanas: a Rússia, na forma da União Soviética, derrotou a melhor força militar da história do Ocidente, e o simples fato de o Ocidente tentar reescrever essa história reivindicando para si a vitória, sem admitir o papel preponderante desempenhado pela URSS, revela não apenas uma agenda ideológica e péssima formação acadêmica, mas também um profundo e duradouro trauma”.
O trauma persiste, e agora se metastizou em um Novo Ciclo de Demência – exemplificado pela atual Guerra DO Terror e pelos planos da OTAN de tentar uma remixagem da Operação Barbarossa até 2030. Enquanto isso, “a humilhação geopolítica da OTAN permanece segredo para a maior parte dos estratos menos sofisticados do público ocidental”.
Essa é uma maneira diplomática de caracterizar a implacável lavagem cerebral e a imbecilização do Ocidente Coletivo pós-modernista e pós-cristão.
Nos dias do Império Romano, os latinos conseguiram transformar tudo em terra arrasada e declarar vitória. A crônica de Martyanov sobre o destino do Império Contemporâneo vira Tácito de ponta-cabeça: antes de conseguirem transformar tudo em terra arrasada, uma potência oponente infligirá a eles a inexorável derrota.
Tradução de Patricia Zimbres
Foto: Divulgação
FONTE: https://www.brasil247.com/blog/uma-selva-de-espelhos-a-ultima-guerra-do-hegemona